quarta-feira, 5 de outubro de 2022

ZAMORA
A propósito da palração no 5 de Outubro de hoje, umas linhas.

Nestes tempos de preparar as gerações as melhores de sempre, desconheço o que agora lhes ensinam da nossa história. Desconheço por exemplo se lhes inculcam que temos de pedir a todo o mundo desculpa por tudo o que aconteceu no passado. Ao que se sabe, olhando com os olhos de hoje e presentes os valores que nos devem guiar, passaram-se certamente várias coisas muito reprováveis.

Mas indo à questão Zamora.
Ensinava-se e disso me lembro no liceu, o Tratado de Zamora.
Não sou historiador mas tenho dois bons amigos que o são. Com obra publicada, conceituados.

E com o Bernardo aprendi que, em bom rigor, não houve nenhum tratado de Zamora. Não foi assinado nenhum Tratado de Zamora. 
O que se segue ao Bernardo devo.

A questão sobre as origens de Portugal é muito interessante.
As referências a acontecimentos que são muitas vezes apresentados como "actos fundadores da Nacionalidade" (Batalha de São Mamede em 1128, Batalha de Ourique em 1139 , Conferência de Zamora em 1143, bula papal Manifestis Probatum em 1179...) são sem dúvida relevantes. 

Já houve até quem chamasse a 24 de Junho de 1128 "A Primeira Tarde Portuguesa", referindo-se à vitória de Afonso Henriques sobre a mãe e o "partido" galego dos Trava na batalha de São Mamede. Mas a questão é certamente mais complexa.

Não há um dia da "inauguração de Portugal". 

Há um processo longo que passa por vários factos e por várias datas. Se o "corte" político com a Galiza foi em 1128 e Afonso Henriques passou a governar o Condado Portucalense, só em 1139-1140 começou a intitular-se rei, no seguimento da vitória em Ourique. 

A partir desta data temos, portanto, um auto-intitulado rei de Portugal, mas que só seria reconhecido como tal em 1143 pelo rei de Leão Afonso VII (o Condado era parte do reino Leonês), e o Papa, autoridade religiosa, espiritual e diplomática suprema da cristandade ocidental, só reconheceria o título de rei a Afonso Henriques em 1179.

Nesse encontro, em Zamora, em que também esteve presente um legado do Papa, o cardeal Guido de Vico, o rei de Leão e Castela, Afonso VII, passa a reconhecer Afonso Henriques como rei de Portugal. 

Mas não existe nenhum "Tratado de Zamora" em que tal título seja atribuído ao rei português; o que há é dois ou três documentos da chancelaria régia Leonesa dessa altura que passam a designar o português como rei de Portugal. 

Como Afonso VII se intitulava Imperador, era, para ele, um factor de prestígio ter um rei como seu vassalo. 

Ao mesmo tempo, Afonso Henriques negociou com o representante da Santa Sé (e sem Afonso VII saber...) que só reconhecia vassalidade ao Papa. 

Portanto, de Zamora, saíram todos contentes
- Afonso Henriques porque era reconhecido como rei pelo primo Afonso VII e, em simultâneo, afirmava-se unicamente vassalo do Papa; 
- Afonso VII também saía feliz porque ele, imperador, reconhecia um rei (seu inferior) que, como vassalo, era seu "subordinado".

Poderá dizer-se - como a diplomacia "resolve" tudo a contento da respectiva parte

Mas, mesmo assim, o território português ainda não estava definido, pois a Reconquista portuguesa só terminaria em 1249, com a conquista das últimas praças Algarvias, no reinado de Afonso III. Além de que a fixação da fronteira com Castela apenas seria estabelecida em 1297, no tratado de Alcanizes, sendo rei D. Dinis. 
Foi também com este monarca que o Português substituiu o Latim como língua "oficial" da Chancelaria régia, por volta de 1295-96.

Podemos considerar que a partir de 1139-1140 há um reino de Portugal como entidade política independente, mas que está e estará ainda muito tempo em construção. 

A questão da nacionalidade é ainda mais complexa, pois enquanto sentimento relativamente generalizado de pertença a uma comunidade própria, distinta de todas as outras, a sua estabilização será ainda mais prolongada no tempo. 
Terá, no final da Idade Média, um ponto alto com a chamada crise ou revolução de 1383-1385, quando se recusa a integração em Castela e se "refunda" o reino com a nova dinastia de Avis.

Por curiosidade, lembrar que em 1940 foi oficialmente considerado "Ano dos Centenários". 
A Grande Exposição do Mundo Português pretendia celebrar 800 anos de "fundação da nacionalidade" e 300 anos de Restauração da Independência. 

Num mundo em plena II Guerra Mundial, a exposição organizada pelo governo celebrava um "Mundo Português" antigo de oito séculos, em paz e capaz de grandes realizações. 
A História foi mobilizada para essa operação de que os contemporâneos ainda hoje têm memória.

António Cabral (AC)

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