Transcrevo um interessante (opinião pessoal naturalmente) artigo de opinião de que acabo de tomar conhecimento, da autoria de um Coronel reformado, do nosso Exército, David Martelo.
António Cabral (AC)
DO CAMINHO MARÍTIMO PARA BELÉM
Assim, em vez dos políticos de profissão, (a República) passará a governar pelo exército, que é, de espírito, o contrário deles...
FERNANDO PESSOA, Da República, p. 243.
Apesar de ainda estarmos a pouco mais de um ano das próximas eleições para a Presidência da República, a recente passagem à reserva do almirante Gouveia e Melo e a elevada probabilidade de vir a ser um dos candidatos à suprema magistratura da Nação desencadearam um animado debate sobre a possibilidade de, passados cerca de quatro décadas sobre o final da presidência do general Ramalho Eanes, voltar a perfilar-se uma candidatura de um militar.
Ramalho Eanes – que, apesar da sua atribulada presidência, deixou uma recordação positiva na sociedade portuguesa – vinha sendo visto como um caso excepcional, decorrente do ambiente revolucionário que se vivera entre 1974 e 1976, na transição da ditadura para a democracia. Pela lógica dos costumes políticos europeus, seria expectável que uma candidatura de militar (fora da actividade de serviço) não voltasse a concretizar-se.
Dentro desta benevolente convicção, o caso da possível candidatura do almirante Gouveia e Melo veio abalar alguns espíritos detentores de postos de comentário político, alguns dos quais se precipitaram em alarmantes juízos, com notória escassez de cultura política e capacidade de análise relativamente ao momento actual do mundo em que vivemos.
Provavelmente, o factor mais desestabilizador desses bem-intencionados espíritos tem residido nos resultados das sondagens até agora publicadas, as quais insistem, umas atrás das outras, na colocação do almirante num primeiro lugar, bem destacado dos outros potenciais concorrentes.
É sobre esta assinalável preferência dos portugueses que pretendo adiantar algumas das reflexões que me ocorreram, reflexões essas cujos contornos não tenho vislumbrado nos numerosos textos que até agora me foram dados ler.
Assim, importa formular esta pergunta: que característica, ou características, identificaram os portugueses no almirante Gouveia e Melo para se disponibilizarem a levá-lo até Belém?
Em teoria, essa preferência poderia resultar de um ou mais dos seguintes atributos:
Da sua notoriedade pessoal
Das suas ideias políticas
Da sua não-ligação a partidos políticos
Da recordação de outros militares em cargos políticos, em democracia
Da preparação para liderar, própria dos militares de carreira
Como é amplamente sabido, a notoriedade pessoal do almirante Gouveia e Melo no meio civil foi conquistada pela forma eficaz como reorganizou o sistema de vacinação, aquando da pandemia de Covid-19. Foi um feito importante e com grande impacto mediático, pelo que admito que tenha algum peso na preferência que lhe é dedicada.
Das suas ideias políticas pouco sabemos. Sendo, até há poucos dias, militar no activo, estava-lhe vedada a actividade política. Este aspecto, tem sido exageradamente mencionado pelos comentadores assustados por este fenómeno, como se para ser eleito não tivesse que haver, previamente, uma campanha justamente adequada a esclarecer as dúvidas sobre a provável acção dos candidatos no caso de serem eleitos. De qualquer modo, fica claro que, dado o natural silêncio do almirante, não é no campo das ideias políticas que se deve buscar a explicação para o seu relevante sucesso nas sondagens até agora publicadas.
A sua não-ligação aos partidos políticos também não parece explicar grande coisa. Já tivemos várias eleições presidenciais a que concorreram figuras independentes dos partidos – Fernando Nobre (2011) e Sampaio da Nóvoa (2016) – e não lograram destacar-se das figuras com antecedentes partidários.
Poderia ter algum fundamento na preferência a recordação do desempenho de outros militares em cargos políticos, em democracia, nos quais a história nos recorda Winston Churchill, Charles de Gaulle ou Dwight Eisenhower, grandes figuras do século XX, todos eles formados nas Academias Militares dos respectivos países. Assim como Ramalho Eanes. Mas, exceptuando este, ainda vivo, não vejo que as restantes figuras pudessem influenciar tantos portugueses. É preciso reconhecer que poucos deles saberão quem foram aquelas ilustres personagens. Mas cabe aqui recordar o que, em 1932, o futuro presidente da República Francesa, Charles de Gaulle, publicou, numa interessante obra de conteúdo ético-militar, na qual, a certo ponto, afirmava:
O político e o militar levam (...) para os empreendimentos comuns caracteres, procedimentos e preocupações diferentes. Aquele atinge os objectivos por caminhos abrigados; este chega a eles em linha recta. Um, que vê à distância de modo enevoado, julga as realidades complexas e dedica-se a apreendê-las pela astúcia e pelo cálculo; o outro, que vê com clareza, mas para o imediato, acha-as simples e acredita que se podem vencer desde que se esteja decidido a tal. Perante um acontecimento grave o primeiro pensa no que os outros irão dizer, enquanto o segundo consulta os princípios (1)
Ficou para o fim a preferência por quem provém de uma carreira que confere preparação para liderar, função para a qual se não exige uma forte inclinação para comentar publicamente tudo o que se passa no país e no mundo. E, se estas características são importantes em tempo de paz, é sensato deduzir que aumentam muito de valor quando sinais inquietantes de guerra se perfilam no horizonte e o ocupante do cargo é, por inerência, o comandante supremo das Forças Armadas.
David Martelo – 16 de Janeiro de 2025
(1) Le Fil de l’épée, Librairie Plon, Paris, 1932, p. 167. 2
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