segunda-feira, 16 de outubro de 2023

25  NOV 1975 e DEMOCRACIA
No jornal Observador o jornalista Miguel Pinheiro publicou este interessante (para mim, naturalmente) artigo de opinião.
São da minha responsabilidade anotações e realces a cor.

Não, o 25 de Novembro não foi o fim da história
14 Out. 2023
A pr
opaganda é simples; a história é complicada. Ao contrário do que a nossa atual direita pensa, Portugal não se tornou numa democracia verdadeiramente livre com o 25 de Novembro.

As coisas nunca são tão simples como nos querem fazer crer. 
Nos últimos dias, semanas e meses, uma data transformou-se no santo-e-senha do regime: quem se quer afirmar de esquerda, desvaloriza o 25 de Novembro; quem se quer afirmar de direita, exalta o 25 de Novembro
O exercício teria graça, não se desse o caso de se basear num nebuloso equívocoEsse equívoco existe tanto à esquerda como à direita, mas, convém notar, é muito maior à direita do que à esquerda. É que, verdadeiramente, o 25 de Novembro não foi aquilo que eles pensam.

A 25 de Novembro houve uma derrota, mas não existiu uma ruptura. Os planos da esquerda revolucionária que se tinha infiltrado nas Forças Armadas e tomado conta de alguns quartéis foram travados. Mas o que se seguiu não foi, imediatamente, uma democracia plena — foi uma penosa e difícil negociação. Havia partidos e militares do MFA que queriam certificar-se de que as eleições que se seguiriam - primeiro as legislativas e depois as presidenciais - não permitiriam ao bom mas perigoso povo barrar o “caminho para o socialismo” nem acabar com a tutela dos militares sobre o regime. Por isso, mesmo depois do 25 de Novembro, foi preciso falar com eles. Se aterrasse em Portugal a 26 de Novembro de 1975, a nossa direita, da Iniciativa Liberal a Carlos Moedas, ficaria certamente abismada com esta necessidade de apaziguar e ceder.

As primeiras eleições depois do 25 de Novembro seriam as legislativas, a 25 de Abril de 1976. Mas, antes do voto, tinha que haver uma Constituição aprovada; e, antes de ser aprovada a Constituição, tinha que haver um acordo. Isto porque o MFA não pretendia deixar os partidos à solta. Em vez de permitirem que os deputados constituintes, democraticamente eleitos um ano antes, cumprissem a sua função em absoluta liberdade, os militares impuseram-lhes a sua força
À procura de oxigénio, os partidos tinham assinado, a 11 de Abril de 1975, um pacto em que o MFA ditava as suas exigências para a futura Constituição — que incluíam, naturalmente, a criação de centros de poder que prolongassem o seu controlo sobre o país. 
Depois do 25 de Novembro, esse pacto não foi rasgado, foi apenas reescrito: ficava determinado, como se fosse a pedra dos Dez Mandamentos, que o MFA continuava a mandar mesmo sem ter votos

No PSD, Sá Carneiro resistiu literalmente até ao último minuto: a assinatura do segundo Pacto MFA-Partidos estava marcado para as 20 horas do dia 26 de Fevereiro de 1976, mas o partido anunciou que só às 17 horas teria uma posição final. Forçado a ceder, Sá Carneiro recusou-se a assinar pessoalmente o papel. O PS mandou o seu líder, Mário Soares, à cerimónia; o CDS fez o mesmo, com Freitas do Amaral; mas o PSD enviou apenas Magalhães Mota, tendo Sá Carneiro preferido o recolhimento à humilhação. Este pacto ditava, por exemplo, que a Constituição a aprovar pelos deputados teria obrigatoriamente de ter um Conselho da Revolução, constituído por militares e armado com vastos poderes.

As segundas eleições seriam as presidenciais, a 27 de Junho de 1976. Mas, também aqui, apesar do 25 de Novembro, a escolha chegou primeiro e o voto apenas depois. Os partidos perceberam logo que não teriam liberdade para promover os candidatos que entendessem: o primeiro Presidente da República eleito teria obrigatoriamente que ser um militar. Sendo assim, era preferível deixá-los escolher.

Mário Soares convidou para almoçar Melo Antunes, Vítor Alves e Vasco Lourenço e combinou o seguinte método: o líder do PS entregava-lhes uma lista de quatro nomes possíveis e os militares escolhiam um. 
Essa escolha foi feita pouco depois por nove homens que se sentaram no Forte de São Julião da Barra: Vasco Lourenço, Melo Antunes, Vítor Alves, Pezarat Correia, Franco Charais, Marques Júnior, Sousa e Castro, Ramalho Eanes e Pires Veloso. 
Este último, que era comandante da Região Militar do Norte, fora convocado apenas na véspera e, depois de perceber que o motivo do encontro daquele pequeno grupo era escolher o candidato que inevitavelmente venceria as presidenciais, lançou, entre o espanto e a indignação: “Que democracia é esta?”.

Era uma boa pergunta: com receio de novos golpes, PS, PSD e CDS reconheciam que teriam inevitavelmente de apoiar a escolha que saísse daquela sala. No final, o escolhido foi Eanes, com sete votos. Vou repetir: na prática, sete militares fechados num forte escolheram o Presidente da República dos cinco anos seguintes. As eleições propriamente ditas foram apenas uma formalidade. 

O que tudo isto quer dizer é que Portugal não se tornou numa democracia verdadeiramente livre a 25 de Novembro de 1975. 
Isso só aconteceu em 1982, quando a revisão constitucional finalmente remeteu os militares para os quartéis; e em 1986, quando foi eleito o primeiro Presidente da República civil. 
Se a nossa direita quer celebrar alguma coisa, celebre isso.

Estão vivos, Ramalho Eanes, Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Franco Charais, Sousa e Castro.

Aposto que:
- Ramalho Eanes não abrirá a boca, não telefonará ao autor do artigo,

- os restantes, provavelmente, criticarão o jornalista em silêncio, quiçá carimbando-o de "neo-fascista", 
- o PS e outros, caladinhos continuarão,
- Álvaro Cunhal, Mário Soares e Sá Carneiro estarão às voltas no túmulo.

Já agora, quantos prestarão agora maior atenção à parte do discurso de Vasco Lourenço em Alcáçovas sobre a extinção do Conselho da Revolução?
António Cabral (AC)

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