sexta-feira, 21 de agosto de 2020

PORTUGAL  Precisa  de  se  Descolonizar ?
O texto de que tomei conhecimento e que agora aqui partilho, é da autoria de um oficial reformado do Exército, o sr Coronel David Marcelo.
Como sempre, respeito as opiniões de outrem, concorde ou discorde delas, no todo ou em parte.
No caso concreto, partilho e concordo com as opiniões deste oficial, que participou activamente no processo antes e depois de 25 de Abril de 1974.
Os sublinhados e realces são da minha responsabilidade.
António Cabral (AC)

PORTUGAL PRECISA DE SE DESCOLONIZAR?


Em Março de 1953, com seis anos de idade, encontrava-me em Angola, mais precisamente em Sá da Bandeira (actual Lubango). Nesse mês, iniciava-se o ano lectivo em Angola e fui matriculado na Escola n.o 59, para frequentar a 1.a classe. No trajecto de minha casa para a escola, tinha de atravessar uma pequena sanzala, cujos habitantes tinham um aspecto semelhante aos encontrados pelos navegadores portugueses quando ali chegaram no século XV: andavam seminus e quase não falavam português. Depois de passar a sanzala, ficava diante do Liceu Diogo Cão, um dos dois únicos liceus que então existiam em Angola. A minha escola ficava ainda para lá do liceu.

Assim que começaram as aulas, logo notei que tinha como parceira de carteira uma menina negra. Mas todos os outros meninos eram brancos. Não me recordo de qualquer incidente de teor racial relacionado com a minha colega de carteira.

No meu ambiente familiar, a questão racial era encarada com verdadeiro espírito cristão, pelo que a única constatação que se fazia era a de que havia pouquíssimos angolanos de cor com um estatuto social semelhante ao dos brancos. Isso devia-se ao seu atraso civilizacional, mal que, afirmava-se então, as autoridades portuguesas estavam a tratar, com as políticas de assimilação previstas no Acto Colonial.

Em 1967, já alferes do Exército, fui para Angola, para a companhia de caçadores metropolitana que estava aquartelada na Quibala-Norte, pertencente ao batalhão sediado em Bessa Monteiro. Nesse aquartelamento, estava, ainda, um pelotão de artilharia destacado do Regimento de Artilharia de Luanda. Era uma pequena força da “guarnição normal”, designação que era dada às unidades que não vinham, de reforço, da Metrópole. Como seria de esperar, os vinte e poucos militares desse pelotão eram quase todos negros. Que me lembre, eram brancos o alferes, um furriel e dois operadores de transmissões. As praças da especialidade de artilharia, dadas as tecnicidades da arma, eram das mais qualificadas em habilitações literárias. Pelo menos dois dos cabos eram ‘regentes de posto de ensino’, uma categoria inferior de professor primário, que também existia na Metrópole. Para completar este conjunto de militares negros com qualificações acima da média, o segundo furriel, negro, era professor primário, diplomado pela Escola do Magistério Primário de Luanda.

No tempo em que decorre esta narrativa, havia, ainda, uma percentagem considerável de militares metropolitanos que eram analfabetos ou que, não o sendo, não tinham sido aprovados no exame da 3.a classe. Estava estipulado por lei que nenhum militar poderia passar à disponibilidade sem, antes, ser aprovado no exame da 3.a classe. Esta determinação ia acompanhada pela obrigatoriedade de todas as unidades militares manterem uma “escola regimental”, destinada, precisamente, a preparar os militares para o referido exame.

Como o furriel de artilharia negro era o único professor primário existente naquele quartel, o capitão, muito naturalmente, nomeou-o professor dos militares brancos iletrados, missão na qual era coadjuvado pelos cabos angolanos regentes de posto de ensino.

Imaginem, agora, a minha surpresa, no contexto imperial em que vivíamos, quando, após o almoço de um dos primeiros dias da minha estada na Quibala-Norte, o capitão me disse para vir com ele dar uma volta pelo quartel. E lá fomos os dois. Quando chegámos próximo do edifício JC do refeitório, os meus olhos arregalaram-se ao ver, em pé, junto do quadro preto, o furriel e os dois cabos angolanos, a ‘civilizarem’ uma dezena e meia de militares metropolitanos. O capitão, apercebendo-se da minha surpresa, disse qualquer coisa deste género: “tendo eu profissionais do ensino na companhia, não era lógico nomear outro graduado, só por ele ser branco”.

Digeri muito bem o evento. Confesso que não tardei a sentir um grande orgulho, por tudo e por todos: pelo exemplo que (desta vez) se dava da concordância entre a propaganda e os factos reais; pela serena aceitação da situação da parte dos soldados brancos, reconhecendo que aqueles portugueses de cor os ensinavam porque estavam devidamente qualificados para o efeito. Ao longo dos anos, regressei mentalmente, por várias vezes, à escola regimental da Quibala-Norte. Imaginei que, provavelmente, uma cena deste tipo seria impossível noutros exércitos de países mais desenvolvidos.

Mas a experiência africana, em cenário de uma guerra sem fim, fez-me seguir a pista do 25 de Abril, no qual me empenhei de corpo e alma, por considerar que a guerra se não resolveria sem a prévia conquista da Liberdade. O doloroso processo que se seguiu no tocante à separação política das antigas colónias não pôs termo ao relacionamento amistoso de Portugal com os povos que anteriormente dominava. Muitos desses africanos vieram mesmo trabalhar para Portugal, alguns adquiriram a nacionalidade portuguesa e têm usado os seus direitos políticos na plenitude, elegendo e fazendo-se eleger. No actual governo, além do primeiro-ministro de ascendência indiana, há a ministra da Justiça, negra de origem angolana.

O que fica dito, no entanto, não pretende ser, nem é, um atestado de ausência de racismo. Melhor dizendo: da ausência de racistas. 

Em Portugal, há machistas, há fascistas, há egoístas, há comunistas, há racistas, etc., e, todavia, o país não merece, só por isso, ser considerado machista, fascista, egoísta, comunista ou racista
No entanto, nos últimos tempos, há quem esteja tentando descobrir mais uma “causa fracturante”, para limar mais umas arestas da sociedade. Desta vez, porém, a questão vem bulir com a nossa História, com a nossa identidade como Nação e com a ideia de Pátria, como memória comum de todo um povo.

Neste movimento anti-racista, cuja intenção de aperfeiçoamento humano só podemos louvar, há uma linha de pensamento que se apoia num discurso perigoso, tendente a dar aos fenómenos de racismo – que existem, sem dúvida –, uma DIMENSÃO que não corresponde às características do povo português e que deve ser contrariada com a argumentação própria de uma sociedade democrática. Portugal, segundo o Índice Global da Paz de 2020, foi classificado em 3.o lugar entre os países mais pacíficos do mundo, logo depois da Islândia e da Nova Zelândia. Teríamos conseguido tal classificação tendo, entre nós, um grave problema de racismo? Não é o racismo uma negação do conceito de sociedade pacífica?

Depois de várias posições, públicas e publicadas, que até nós chegaram nas últimas semanas, apareceu, agora, a ideia de que, para combater o nosso problema de racismo, precisamos de nos “descolonizar”. Foi autor desta argumentação o antropólogo Dr. Miguel Vale de Almeida, em artigo inserido na edição do Público de 18 de Agosto. Entre outras afirmações com o seu quê de original, o autor refere que “hoje sabemos, graças ao activismo anti-racista que conseguiu emergir e graças a boa investigação científica e jornalística, que o racismo existe inegavelmente”. Afirma, ainda, o articulista, que “alguns países souberam fazer, ou foram obrigados a fazer, um esforço no sentido de descolonizar as suas sociedades e de combater o racismo. Portugal tem sido imensamente incompetente nisso”. Curiosamente, NÃO DIZ quais foram esses países “competentes”. Quanto gostaria de saber quem são esses países exemplares!

E, então, Vale de Almeida encontra na sua experiência pessoal, a solução para este mal: “Mas têm sido sobretudo autores, artistas, académicos, activistas, políticas e políticos anti-racistas quem mais me têm ensinado, junto com a minha prática da antropologia, que Portugal ainda não se descolonizou”.

E, porque é que o autor estabelece a ligação do racismo à ideia colonial? Porque, segundo ele, “nada mudou verdadeiramente, dos livros escolares à conversa de café. Nem sequer o tremendo esforço de construção da democracia e duma sociedade mais justa veio substituir a estória que contamos sobre nós próprios. Não parece ser disto, da liberdade e da democracia, que a maioria dos portugueses se orgulha, mas sim, e ainda, dos “descobrimentos”, da expansão e mesmo do colonialismo e seus avatares contemporâneos”.

Isto é, púnhamos o início da nossa memória colectiva em 25 de Abril de 1974 e mandávamos os Lusíadas para o caixote do lixo. NÃO, o 25 de Abril em que participei foi feito para honrar a memória dos que construíram Portugal, para honrar todos aqueles que deram o melhor do seu saber e das suas vidas para fazerem de um pequeno país periférico da Europa uma referência mundial, que nenhum preconceito tonto poderá apagar. O 25 de Abril fez-se, justamente, como mais um passo no sentido do aperfeiçoamento humano da sociedade portuguesa, aperfeiçoamento esse que deve continuar, sem que se subverta a ideia de Pátria que, assente no nosso passado, sustenta o nosso futuro.

David Martelo – 19 de Agosto de 2020.

1 comentário:

  1. Gostei e concordo. Não podemos renegar e reescrever a nossa história. Um passado valoroso cheio de desafios e de conquistas para a humanidade.

    Colonizados estamos nós agora por estes preconceitos fracturantes, vindos de gente urbana pouco instruída, mas arrogante, que nos quer impor uma narrativa que nada tem a ver com a realidade, nem com a nossa cultura latina.

    Que racismo e conflitos existem, é inegável. Faz parte do reino animal.. Agora, ódio racial..!? É coisa que não existe no português..

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