António Cabral
"Uma amargura me submerge inconsolável"
por henrique pereira dos santos, em 25.10.24
"Serão ou não em vão?", continua Jorge de Sena, antes da pergunta essencial "Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?".
Lembrei-me disto, sobretudo do verso que escolhi para título disto, a propósito da minha "não-pátria amada" (para usar uma expressão feliz de José Pimentel Teixeira, o que escreveu o Torna-viagem, que aconselho), ou melhor, a propósito das notícias das últimas semanas sobre essa não-pátria amada, Moçambique.
"Quem diz que sim, quem diz que não, quem diz que sim, quem diz que não, são os movimentos de libertação", cantava Sérgio Godinho com a melhor das intenções, mas como concluiu Fausto Bordalo Dias, muitos anos mais tarde, a realidade é que não se consegue dizer que as pessoas passaram a viver melhor depois da independência (Fausto falava da sua e minha terra de nascimento, Angola, e acrescento que o mesmo se pode dizer da minha não-pátria amada).
Quase cinquenta anos depois, mais tempo do que o que durou o Estado Novo, Moçambique faz umas chapeladas monumentais a que chama eleições, convive com o assassinato de membros relevantes de opositores políticos do mesmo partido que governa o país há quase cinquenta anos e as pessoas comuns vivem em condições miseráveis que constrastam fortemente com a riqueza das elites dominantes, que crescem à sombra de um poder absoluto e sem respeito pelo estado de direito.
Não há uma letra do que escrevi que possa ser lida como a defesa de uma situação colonial pré-existente, mais, acho perfeitamente razoável a hipótese de que a rigidez do regime em relação à questão colonial (rigidez essa que está muito longe do imobilismo com que frequentemente o pintam) bloqueou soluções melhores, ao ponto do colapso militar que se seguiu ao 25 de Abril ter impedido qualquer discussão sobre soluções alternativas à entrega do poder absoluto a quem tinha armas na mão, e vontade de as usar sem restrições para obter esse poder absoluto.
O que me interessa aqui é que, independentemente da entrega do poder absoluto a um poder tirânico assente na força das armas não ter nascido do vácuo, há uma responsabilidade objectiva da Frelimo e dos seus dirigentes no que hoje é Moçambique (sim, Samora incluído, Samora nunca foi o pai da pátria simpático e sorridente como frequentemente é caracterizado, Samora, desde sempre, actuou como um ditador sanguinário sempre que achou necessário para assegurar o poder absoluto, sendo conhecidos os discursos violentamente racistas que foi fazendo desde as primeiras negociações de entrega do poder, com o objectivo de liquidar quaisquer sementes de divergência, mesmo que isso tivesse como consequência, como veio a ter, uma perda de capital humano brutal de que ainda hoje o país se ressente).
Como é inevitável nesses ambientes políticos e sociais, a retórica anti-colonial e anti-racista foi pesadamente usada para justificar moral e socialmente os excessos do exercício do poder absoluto, ao mesmo tempo que, fora da retórica, uma máquina de poder corrupta, arbitrária e brutal se foi instalando, perdendo os adereços desenvolvimentistas nacionalistas e de legitimidade histórica associado à resistência armada, para se mostrar hoje como aquilo que é e sempre foi.
E "uma amargura me submerge inconsolável" por não ver qualquer esperança justificada de que Moçambique consiga libertar-se, em breve, da sua elite extrativista e brutal.
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