terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O Torrãozinho de Açúcar 
O Torrãozinho de Açúcar
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA
Quinta-feira, 5 de Outubro de 2000

Há 19 anos o Governo de então, ofereceu a criançinhas um tal de  "kit patriótico". 

É um texto de um estrangeirado, cosmopolita, acusado de não ser um bom português por um oficiante do patriotismo de quatro costados. O estrangeirado era Eça e o patriota Pinheiro Chagas e vem nas "Notas Contemporâneas". O texto é uma execução em publico do "brigadeiro Chagas" como poucas existem em qualquer língua, um fabuloso texto irónico, em que cada palavra é afiada como uma agulha e cortante como uma navalha andaluza. É também um dos textos de mais fundo patriotismo, natural, "burguês", como escreve Eça, que se respira como gosto por um país melhor e funda compreensão das razões por que ele é o que é.

Dei por mim a pensar, com certeza pela moleza dos sentidos que estas coisas da pátria trazem, que triste que era o facto de as criancinhas que receberam o "kit patriótico" nunca irem poder ler esta maravilha que a língua da sua pátria lhes pode dar, porque pura e simplesmente não percebem nada do que lá está escrito. Quem diz as criancinhas futurandas, diz os estudantes do presente e mesmo muitas das criancinhas do próximo passado, que são hoje os professores das que recebem o "kit" .

Vamos ao texto. Intitulado "Brasil e Portugal" e sob forma de um carta a Pinheiro Chagas, foi publicado em 1880, há 120 anos, na "Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro". Não era um texto erudito, mas uma crónica jornalística, antepassado nobre daquilo que nesta página se escreve, ponderadas as enormes diferenças de qualidade e mérito. Nas sua meia dúzia de páginas, fala-se de Sansão, do martírio de Stº Estêvão, do padre Manuel de Macedo e do poeta Bocage, do Parnaso, da campanha do Rossilhão, de Arzila, dos carneiros de Panurgo, ou mais exactamente da "fila balante dos carneiros de Panurgo", de Carlos Magno, o que era imperador, de Michelet, de Ajax, de Cochim e Cananor, das Molucas, da Monarquia de Frei Bernardo de Brito, das batalhas de Sadova e Sédan, dos "paxás de Constantinopla", dos "rajás da Índia", dos "mandarins de Pequim", do "bei de Tunes", de Lançarote do Lago, de Galaad, do Santo Graal, de Belzebu, e das suas incarnações em Darwin, Huxley e Zola, do exilado Ovídio e dos "brandos epigramas de Higino". Para além disso, há as "cãs", a "verve fumegante", as "operações cabalísticas", o "minuete", e o "in-fólio", e muito mais que, sem dicionário, é hoje o mesmo que escrever chinês.

Dirão os próceres da nossa educação para que é preciso tudo isto, palha para os dias de hoje, erudição sem sentido prático. Para que é preciso saber quem é o "bei de Tunes"? Não é uma peça de cutelaria, ou uma aldeia do Club Mediterranée? E os "rajás da Índia", são sorvetes picantes? Estão a ver como eu sei! E isso dos "paxás" não são aqueles preguiçosos do Big Brother reclinados nos sofás (ia escrever otomanas, mas parei a tempo ...). E o "in-fólio" vem no "Kama sutra", não é ? Os "mandarins", ah, isso sei o que é, é um fruto que se come nos restaurantes chineses, não é? Estou tão certo que aposto os 200 contos, a ver se sou milionário...

Lamento. É preciso saber muitas destas coisas, e muitas mais ainda, entre outras razões, para ler Eça. Bem vistas as coisas, a maioria das referências de Eça, que hoje parecem alta cultura, eram escolares e comuns na época. Circulavam nos jornais, apareciam nos discursos parlamentares, e serviam para afiar a caneta, como Eça fez sem ter dúvidas se os seus leitores o percebiam. Tinham como fonte a Bíblia, o catecismo, as gravuras de Epinal (uma espécie de calendários populares que se colocavam no equivalente às oficinas de mecânica, só que em vez de mulheres nuas tinham santos e guerreiros), apareciam na primeira página dos tablóides da época como o "Petit Journal", vinham das referências clássicas que se aprendiam no latim da escola, entre as fábulas de Esopo e a Guerra da Gália, vinham da literatice dos salões, dos almanaques, da imprensa, e da memória recente de guerras e de batalhas. Pode-se descontar esta última parte, substituindo Sédan por Estalinegrado, que o problema subsiste intacto, porque também não estou a ver muito quem nas escolas saiba colocar a terra no mapa da Rússia .

Rebuscando na minha memória escolar, onde eu aprendi muitas destas coisas, também não encontro nenhuma razão para ter medo que me acusem de pedante por achar normal saber o que era o Parnaso. Na Religião e Moral e no catecismo aprendi os rudimentos da Bíblia, e lembro-me de ter ganho uma sabatina nas aulas porque fiz uma pergunta sobre Nabucodonosor. A condição posta pelo padre era que só se podia perguntar sobre nomes que se soubessem dizer e eu treinei. Quanto ao bei de Tunes acho que foi numa história de piratas e reféns que vinha no Cavaleiro Andante, de onde, aliás, em conjunto com Júlio Verne, vieram os rajás, paxás, cossacos e mandarins. Mesmo Xenofonte, encontrei-o num magnífico livro de leituras oficial do ensino técnico, onde o meu pai era professor, que tinha uma banda desenhada com a história da retirada dos dez mil. Nada de extravagante, e podia repetir mil exemplos, que com certeza muita gente também poderá repetir. Até agora, a partir de agora, não sei.

Não vale a pena recitarem-me todas as vantagens do ensino de massas, dizerem-me que esta ignorância se nota mais porque hoje o "povo" aparece na televisão e no tempo do Eça os mesmos que agora fazem a escolaridade obrigatória eram socialmente invisíveis a não ser quando se revoltavam, eram analfabetos e emigravam descalços nos porões dos barcos para o Brasil. Mas não é esse o problema, nem aí me enredam. A questão está em saber se para ilusoriamente se dar a todos aquilo que pouco mais é do que uma versão moderna do analfabetismo - convém lembrar que os padrões mínimos entretanto subiram - se destruiu o equivalente à elite burguesa e interessada para que Eça escrevia. Se, somado e subtraído tudo, não se está pior com menos gente em termos absolutos e percentuais a ter um mínimo de cultura geral.

Não é de erudição que falo, mas da mais geral das culturas, porque há algo de terrivelmente errado em que cada vez menos gente tenha a capacidade para ler este texto escorreito, divertido, sério, escrito num português maravilhoso. E quem diz este, diz muitos. E continuarmos felizes como o "brigadeiro Chagas", com as grandezas da história pátria, quer na sua versão salazarista, quer do 25 de Abril, e a minar o futuro dela, com a nossa falta de rigor, disciplina, gosto, atenção e trabalho e dizendo felizes como o "brigadeiro": "Portugal é pequeno, mas é um torrãozinho de açúcar".

Como cada vez mais se confirma, "um torrãozinho de açúcar" a passar para "rebuçado",  na AR, em Belém, na RTP, em S.Bento, no sistema de justiça, etc.
AC

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