terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Sistema eleitoral (7): Um "sonho" impossível

Publicado por Vital Moreira

1. Na Público de hoje, António Barreto dá conta do seu "sonho" de adoção de um sistema eleitoral radicalmente diferente do que vigora em Portugal desde a Revolução democrática de 1974-76, propondo a importação de um sistema próximo do francês, em que os deputados são eleitos em círculos uninominais (tantos quantos os deputados a eleger, ou seja, 230 no nosso caso), por maioria absoluta, havendo uma segunda votação se nenhum candidato obtiver tal maioria na primeira, à qual só podem concorrer os candidatos que na 1ª volta tenham obtido uma percentagem mínima de votos.

Sucede, porém, que se trata de um exercício inteletual impraticável, pois tal revolução eleitoral está fora de equação entre nós, tanto por ser constitucionalmente impossível, como por ser politicamente desaconselhável.

2. Desde a origem que a CRP de 1976 é clara: o sistema eleitoral da AR é de natureza proporcional, sendo os deputados eleitos em círculos plurinomiais infranacionais - que no Continente continuam a ser os antigos distritos administrativos -, sendo os mandatos em cada círculo atribuídos de forma proporcional à votação de cada lista concorrente. Isso faz com que a representação parlamentar reflita aproximadamente a repartição do apoio eleitoral de cada partido político no País. Por conseguinte, é constitucionamente inviável a adoção de um sistema eleitoral maioritário. 

Reforçando essa opção fundamental pela proporcionalidade da representação parlamentar, a CRP considera-a um "limite material de revisão", impedindo a sua remoção por via de alteração constitucional. Ora, num Estado de direito constitucional não são politicamente equacionáveis soluções contrárias aos princípios constitucionais básicos.

3.  Mesmo que não fosse constitucionalmente inviável, não é de sugrafar politicamente essa proposta de revolução eleitoral. 

A razão fundamental está no estreitamento forçado da representação partidária no Parlamento - que é inerente a todos os sistemas eleitorais maioritários, mas que é agravada no modelo francês -, a qual, num país sem minorias étnicas ou linguísticas e com reduzidas clivagens políticas territoriais, ficaria reduzida aos dois ou três partidos maiores, afastando os demais e alienando da representação política uma parte substancial dos eleitores. Outros argumentos contra um sistema eleitoral maioritário a duas voltas seriam a excessiva "personalização" das disputas eleitorais e a vantagem dado aos influentes e "caciques" locais, bem como o aumento da duração e dos custos das operações eleitorais.

Não é por acaso que, ao contrário do sistema de maioria relativa de tipo britânico, que existe num considerável número de países, o sistema eleitoral de tipo francês tem uma reduzida implantação no mundo - não mais de dez países, não havendo nenhum caso na Europa além do país de origem (salvo na Chéquia, mas apenas para a câmara alta do respetivo Parlamento). Ou seja, a política comparada não favorece tal opção.

4. Mas a minha principal objeção à proposta apresentada é a discordância com a substituição do "modelo representativo" clássico do mandato parlamentar, em que os deputados representam ideias e propostas políticas transversais ao território nacional, por um modelo de representação personalizada dos territórios eleitorais, como sucedia nas Cortes medievais, em que os chamados representantes do "3º estado" eram na verdade "procuradores" dos respetivos concelhos.

Nesta perspetiva, julgo que numa democracia pluripartidária, sobretudo em sistemas de governo de tipo parlamentar como o nosso (em que a legitimidade dos governos deriva das eleições parlamentares), não faz muito sentido conceber o parlamento como um agregado de representantes dos círculos eleitorais (que normalmente nem sequer coincidirão com nenhuma comunidade local pré-existente, carecendo, portanto, de identidade política própria) ou aceitar a ideia de que cada deputado local representa todos os habitantes do seu círculo ("o meu deputado"), incluindo os eleitores que votaram noutros candidatos e perfilham posições políticas radicalmente diferentes.

A meu ver, a ideia de que os deputados representam diferentes correntes políticas ao nível de todo o território nacional, e não os círculos por que são eleitos, deve continuar a considerar-se um pressuposto lógico das democracias parlamentares.

O professor Vital Moreira (VM) tece estas considerações a propósito do que António Barreto escreveu, defendeu.
A meu ver VM explica bem as limitações que decorrem do que a CRP expressa.

Indiscutivelmente, a "eleição" tem um papel importantíssimo no constitucionalismo moderno e no contemporâneo. Indiscutivelmente, opinião pessoal naturalmente, a democracia continua a ser o melhor sistema de todos os sistemas, regimes.

A organização do poder político democrático implica naturalmente que todos os seus orgãos exibam legitimidade democrática. Isto implica eleições. 
A nossa CRP por outro lado, define para as eleições o "princípio da proporcionalidade", por assim se ter considerado possível obter uma mais fiel representação do universo político-ideológico do país. 
Deste modo, a CRP afasta qualquer instrumento para facilitar maiorias parlamentares a todo o custo. 

Este sistema proporcional garantirá em princípio que, mesmo correntes mínimas de significado político, possam conseguir eleger candidatos e que nas diversas representações não surjam especiais discrepâncias.
Como é bem conhecido e escrito por quem de direito, "a eleição política está em relação directa e estreita  com o número, as qualidades, o estatuto  e as ligações institucionais das pessoas que nela tenham a faculdade de participar". A democracia privilegia uma pessoa, um voto. E assim deve continuar.

Deve recordar-se que o sistema eleitoral pode ser considerado, o conjunto de regras que regem o modo de manifestação da vontade popular ((lacto sensus), ou a forma de manifestação da vontade popular concreta,  escolha deste ou daquele candidato ou lista (strito sensus). 
O que me interessa aqui é a questão  - votação em listas propostas por partidos.

Creio que nenhum dos nossos constitucionalizas difere disto, "de que só a representação proporcional leva à constituição de uma assembleia à imagem do eleitorado, aí tomando lugar as tendência políticas mais significativas da nossa sociedade".
Eu não discordo.

Indo a António Barreto, ele refere (os meus comentários em cada ponto):
- listas exclusivamente subscritas por partidos ou coligações de partidos (verdade),  
- movimentos, associações e grupos de cidadãos estão excluídos, 
- mais de dez milhões de portugueses não se podem candidatar a eleições legislativas (percebo o sentido, mas é um disparate, não há 10 milhões de eleitores),
- o fabrico destas listas … traduz a realidade da vida partidária e das relações dos partidos com a sociedade. É através das listas que se pode escolher e sanear quem vai ser eleito, quem fica na vida política e quem é despedido (triste realidade, basta ver a actual efervescência),
- foram as escolhas dos chefes dos partidos que decidiram o lugar em que estão nas listas e é assim possível saber já a maioria dos que são eleitos. Os cidadãos não escolheram absolutamente nada (verdade), 
- há cinquenta anos, abstiveram-se cerca de quinhentos mil cidadãos, 
- há vinte anos, um pouco mais de três milhões, 
- há dois anos, perto de cinco milhões e meio optaram pela abstenção. 
- estes números brutos revelam um profundo mal-estar (parece óbvio), 
- existe um problema muito sério, cada vez mais difícil, de legitimidade e de representatividade dos parlamentos eleitos (percebo, mas não é formalmente verdade).

Depois, António Barreto discorre como ele entende que deveria ser, uma revolução, dezenas de círculos eleitorais, "o meu deputado", mudar as relações de cada deputado com o seu partido, sistema a funcionar a duas voltas, etc.

Pessoalmente, penso que há muito de ingenuidade e sobretudo de irrealista em vários coisas concretas que Barreto indica ou defende.
Reconhece, creio, que não há milagres, soluções mágicas, e eu arrisco acrescentar que se trata de problema/ assunto muito complexo.

Mas, salvo melhor opinião, parece-me legítimo dizer:
1º - que as abstenções galopantes demonstram que o sistema está doente, muito doente,
2º - que a democracia deve assentar em partidos políticos,
3º - que a representação proporcional me parece a melhor,
4º - que deveria ser encontrada uma solução para, no âmbito do sistema partidário, se definir uma solução que possibilitasse a participação de cidadãos não militantes partidários,
5º - não sei qual a solução para isso,
6º - que Vital Moreira como bom ortodoxo amante dos corredores alcatifados, se refugia na CRP e no seu trabalho passado para deixar tudo na mesma. Não tem uma referência ao real afastamento das pessoas da política, esquece as pouca vergonhas crescentes, como se vai verificando no presente.
António Cabral (AC)

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