(jornal Sol)
António Carlos Cortez. ‘Estamos a formar alunos para a delinquência’
A cumprir 25 anos de poesia, fala-nos da sua tripla condição de poeta, crítico literário e professor. Sentiu cedo a vocação para o ensino mas hoje diz-se desencantado. ‘Uma escola que não coloque as humanidades no centro não é uma escola, é uma fábrica’.
No pequeno escritório onde conversamos . . . . . .
A cumprir 25 anos de poesia, fala-nos da sua tripla condição de poeta, crítico literário e professor. Sentiu cedo a vocação para o ensino mas hoje diz-se desencantado. ‘Uma escola que não coloque as humanidades no centro não é uma escola, é uma fábrica’.
No pequeno escritório onde conversamos . . . . . .
«Não tenho televisão, recuso», diz-nos António Carlos Cortez. «Não gosto de modas. Lembro-me sempre de uma frase de Leopardi: ‘A moda é a mãe da morte’. Não tenho carro, não tenho carta de condução. Não sou casado, não tenho filhos. Concebi a minha vida assim, dedicada ao ensino, à literatura, à investigação literária».
Licenciado em Estudos Portugueses, estreou-se há 25 anos na poesia. Terminou por estes dias a sua tese de doutoramento, sobre o Mal na obra do seu amigo Gastão Cruz, poeta e crítico falecido em 2022, e acaba de publicar pela D. Quixote Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da poesia de Nuno Júdice.
Mas o que nos traz a sua casa hoje, mais do que a sua obra como crítico, ensaísta ou poeta, é a sua experiência como professor do ensino secundário. . . . . . . . .
. . . . . . Trabalhei com gente muito boa. Alguns livreiros, que vinham dos anos 60/70, ainda se lembravam de ver lá o Aquilino Ribeiro. Fui livreiro durante seis anos, fiz o meu curso a trabalhar e a estudar. Foi óptimo, até porque não havia computadores e nós tínhamos de saber tudo de cor. A organização da Bertrand do Chiado, tal como está hoje, de certo modo foi a equipa com quem eu trabalhava que a fez. E tive a sorte de trabalhar também com o Eduardo Boavida, grande editor e livreiro, com quem aprendi muitíssimo. . . . . .
Licenciado em Estudos Portugueses, estreou-se há 25 anos na poesia. Terminou por estes dias a sua tese de doutoramento, sobre o Mal na obra do seu amigo Gastão Cruz, poeta e crítico falecido em 2022, e acaba de publicar pela D. Quixote Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da poesia de Nuno Júdice.
Mas o que nos traz a sua casa hoje, mais do que a sua obra como crítico, ensaísta ou poeta, é a sua experiência como professor do ensino secundário. . . . . . . . .
. . . . . . Trabalhei com gente muito boa. Alguns livreiros, que vinham dos anos 60/70, ainda se lembravam de ver lá o Aquilino Ribeiro. Fui livreiro durante seis anos, fiz o meu curso a trabalhar e a estudar. Foi óptimo, até porque não havia computadores e nós tínhamos de saber tudo de cor. A organização da Bertrand do Chiado, tal como está hoje, de certo modo foi a equipa com quem eu trabalhava que a fez. E tive a sorte de trabalhar também com o Eduardo Boavida, grande editor e livreiro, com quem aprendi muitíssimo. . . . . .
. . . . . . . . . .
Fui mantendo. Porque também devo muito à universidade. E creio que a universidade portuguesa, ao nível da investigação, faz um trabalho extraordinário, com revistas, com sites, congressos, colóquios. Como professor, isso é fundamental. Fechar-me só no ensino, não ter um pé na cultura, não ter um pé na literatura, nas artes, para mim nunca fez muito sentido.
Tens experiência como professor tanto no ensino público como no privado. É muito diferente?
Tenho para mim que a formação de professores é extremamente pobre em Portugal. A classe docente…
Sai mal preparada?
Mal preparada, com poucas leituras, e vai exercer a profissão, muitas vezes, de forma meramente instrumental.
De forma burocrática?
Cumprir um horário de trabalho, dizer umas coisas, cumprir aspetos burocráticos e ter o ordenado ao fim do mês. A minha concepção de professor é completamente diferente – até por ter sentido a minha vocação de professor muito cedo, com 13, 14 anos. Apesar de algum desencanto que se abateu sobre mim nos últimos cinco anos, continuo fiel a essa ideia de que o professor, seja em que área for, tem de ser, por um lado, um leitor compulsivo, para poder dar aulas em que todos os saberes se podem integrar, e, por outro lado, alguém disponível para a investigação e para a descoberta de outras artes.
Esse desencanto resulta de algum acontecimento concreto?
Não. Resulta do congelamento das carreiras, dos salários baixos numa profissão que deveria chamar os melhores, da indisciplina geral dos alunos, do desinteresse manifesto de uma geração nascida já em tempo de digitalização, das consequências negativas da pandemia, a somar ao ambiente muitas vezes de delação, de perseguição, de controle…
Entre professores?
Tudo isso concorre para que haja um desencanto geral da maioria dos professores em Portugal. Desencanto e abandono. Estamos a hipotecar seriamente o nosso quotidiano para os próximos anos. Temos cada vez mais sinais de violência, desde logo nas escolas, e ninguém fala disto. Um ministro da Educação que se preze deveria ser alguém com conhecimento do país real.
Do que se passa nas escolas?
Ir às escolas sem aviso prévio, porque no dia em que vão fazer visitas às escolas está tudo bonito para receber o senhor ministro. O Robert Kennedy, em 68, fez visitas a bairros pobres de Nova Iorque e de outras cidades americanas, levando a imprensa atrás de si, porque se tratava, de facto, de mostrar o país real.
Quando falas de violência nas escolas referes-te a alguma coisa a que tenhas assistido?
Há um ambiente de ameaça permanente em relação aos professores. Conheço um pouco da realidade brasileira e há uns anos a minha editora de lá enviou-me alguns vídeos de como eram as aulas. Não é anarquia, é barbárie.
Mas isso no Brasil.
Nós estamos a caminhar para aí.
Quando dizes barbárie eram alunos em cima das mesas, a agredir professores…?
A completa ausência de disciplina, de saber estar, de querer saber, de envolvimento pedagógico. Vou falar de um exemplo óbvio. Será que as pessoas não se lembram do caso da Escola Carolina Michaëlis, no Porto, da aluna que se dirige à professora, tratando-a por tu? ‘Dá-me o telemóvel!’ e vem todo um rol de ofensas. Não se lembram?
Os telemóveis na escola são um problema?
A minha experiência de 20 anos foi sempre boa. Fosse por ordem da escola, fosse por os alunos saberem que eu não pactuo com isso, o telemóvel nunca foi problema. Mas tenho ido a muitas escolas onde não há a lucidez para proibir o telemóvel.
Ou a coragem…
A lucidez e a coragem. Estamos a falar de verdadeira dependência. De toxicodependência, porque aquilo é uma droga. E enquanto os sucessivos ministros insistirem na ideia de que a tecnologia, o digital, o computador, é que vai pôr as crianças e os jovens a escrever e a ler e a terem curiosidade, nós estamos simplesmente a mentir. A mentir-nos, mentir aos pais e, sobretudo, a mentir aos alunos.
É a própria escola que exige que os alunos trabalhem com o computador, é a escola que convida o ladrão para dentro de casa.
Isso tem de ser denunciado. Estive há um bocado em Colares num auditório com 50 alunos do oitavo ano. Logo ao início, disse-lhes: ‘Meus amigos, telemóveis não. E agora temos três hipóteses: ou isto vai correr bem, ou vai correr mais ou menos, ou corre mesmo mal. Eu quero que corra bem. E vou começar por uma afirmação. Estão-vos a roubar o futuro de cada vez que vos dizem que ser adolescente é ser mal comportado e ter uma ideia de liberdade que é o ‘eu quero, posso e mando’. Estão-vos a roubar a cultura e a imaginação’. Ouviram calados e no fim falámos, foi muito bom. Vou lá voltar.
Mas muitos professores não têm essa autoridade e perdem o controlo completo das turmas.
Muitas das pessoas que estão hoje no ensino – claro que também acontece noutras profissões – jamais se perguntaram: ‘O que é que eu gosto de fazer?’. Portanto vivem vidas infernais. O professor é a âncora da turma, é ele que faz com que os alunos se interessem ou se desinteressem. Faz com que haja disciplina ou com que aquilo seja uma rebaldaria. E está ali também para ouvir, para perceber as frustrações, os abismos de cada aluno. . . . . .
Fui mantendo. Porque também devo muito à universidade. E creio que a universidade portuguesa, ao nível da investigação, faz um trabalho extraordinário, com revistas, com sites, congressos, colóquios. Como professor, isso é fundamental. Fechar-me só no ensino, não ter um pé na cultura, não ter um pé na literatura, nas artes, para mim nunca fez muito sentido.
Tens experiência como professor tanto no ensino público como no privado. É muito diferente?
Tenho para mim que a formação de professores é extremamente pobre em Portugal. A classe docente…
Sai mal preparada?
Mal preparada, com poucas leituras, e vai exercer a profissão, muitas vezes, de forma meramente instrumental.
De forma burocrática?
Cumprir um horário de trabalho, dizer umas coisas, cumprir aspetos burocráticos e ter o ordenado ao fim do mês. A minha concepção de professor é completamente diferente – até por ter sentido a minha vocação de professor muito cedo, com 13, 14 anos. Apesar de algum desencanto que se abateu sobre mim nos últimos cinco anos, continuo fiel a essa ideia de que o professor, seja em que área for, tem de ser, por um lado, um leitor compulsivo, para poder dar aulas em que todos os saberes se podem integrar, e, por outro lado, alguém disponível para a investigação e para a descoberta de outras artes.
Esse desencanto resulta de algum acontecimento concreto?
Não. Resulta do congelamento das carreiras, dos salários baixos numa profissão que deveria chamar os melhores, da indisciplina geral dos alunos, do desinteresse manifesto de uma geração nascida já em tempo de digitalização, das consequências negativas da pandemia, a somar ao ambiente muitas vezes de delação, de perseguição, de controle…
Entre professores?
Tudo isso concorre para que haja um desencanto geral da maioria dos professores em Portugal. Desencanto e abandono. Estamos a hipotecar seriamente o nosso quotidiano para os próximos anos. Temos cada vez mais sinais de violência, desde logo nas escolas, e ninguém fala disto. Um ministro da Educação que se preze deveria ser alguém com conhecimento do país real.
Do que se passa nas escolas?
Ir às escolas sem aviso prévio, porque no dia em que vão fazer visitas às escolas está tudo bonito para receber o senhor ministro. O Robert Kennedy, em 68, fez visitas a bairros pobres de Nova Iorque e de outras cidades americanas, levando a imprensa atrás de si, porque se tratava, de facto, de mostrar o país real.
Quando falas de violência nas escolas referes-te a alguma coisa a que tenhas assistido?
Há um ambiente de ameaça permanente em relação aos professores. Conheço um pouco da realidade brasileira e há uns anos a minha editora de lá enviou-me alguns vídeos de como eram as aulas. Não é anarquia, é barbárie.
Mas isso no Brasil.
Nós estamos a caminhar para aí.
Quando dizes barbárie eram alunos em cima das mesas, a agredir professores…?
A completa ausência de disciplina, de saber estar, de querer saber, de envolvimento pedagógico. Vou falar de um exemplo óbvio. Será que as pessoas não se lembram do caso da Escola Carolina Michaëlis, no Porto, da aluna que se dirige à professora, tratando-a por tu? ‘Dá-me o telemóvel!’ e vem todo um rol de ofensas. Não se lembram?
Os telemóveis na escola são um problema?
A minha experiência de 20 anos foi sempre boa. Fosse por ordem da escola, fosse por os alunos saberem que eu não pactuo com isso, o telemóvel nunca foi problema. Mas tenho ido a muitas escolas onde não há a lucidez para proibir o telemóvel.
Ou a coragem…
A lucidez e a coragem. Estamos a falar de verdadeira dependência. De toxicodependência, porque aquilo é uma droga. E enquanto os sucessivos ministros insistirem na ideia de que a tecnologia, o digital, o computador, é que vai pôr as crianças e os jovens a escrever e a ler e a terem curiosidade, nós estamos simplesmente a mentir. A mentir-nos, mentir aos pais e, sobretudo, a mentir aos alunos.
É a própria escola que exige que os alunos trabalhem com o computador, é a escola que convida o ladrão para dentro de casa.
Isso tem de ser denunciado. Estive há um bocado em Colares num auditório com 50 alunos do oitavo ano. Logo ao início, disse-lhes: ‘Meus amigos, telemóveis não. E agora temos três hipóteses: ou isto vai correr bem, ou vai correr mais ou menos, ou corre mesmo mal. Eu quero que corra bem. E vou começar por uma afirmação. Estão-vos a roubar o futuro de cada vez que vos dizem que ser adolescente é ser mal comportado e ter uma ideia de liberdade que é o ‘eu quero, posso e mando’. Estão-vos a roubar a cultura e a imaginação’. Ouviram calados e no fim falámos, foi muito bom. Vou lá voltar.
Mas muitos professores não têm essa autoridade e perdem o controlo completo das turmas.
Muitas das pessoas que estão hoje no ensino – claro que também acontece noutras profissões – jamais se perguntaram: ‘O que é que eu gosto de fazer?’. Portanto vivem vidas infernais. O professor é a âncora da turma, é ele que faz com que os alunos se interessem ou se desinteressem. Faz com que haja disciplina ou com que aquilo seja uma rebaldaria. E está ali também para ouvir, para perceber as frustrações, os abismos de cada aluno. . . . . .
AC
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