domingo, 2 de junho de 2024

Tão democrata que ela é
(sublinhados da minha responsabilidade)
Creio que perseguir objectivos subversivos, mesmo através de meios pacíficos, deve ser ilegal. A lógica dos princípios democráticos não deixa lugar no nosso sistema para partidos que propõem abolir a democracia, mesmo pela via pacífica do voto.” 
Esta frase, publicada em 1955 nos “Anais da Academia Americana de Ciência Social e Política”, exprimia uma ideia popular no seu tempo. Era, por exemplo, o pensamento que estava na base de uma famosa lei do ano anterior chamada Communist Control Act, assinada pelo Presidente Eisenhower, que ilegalizava o Partido Comunista dos Estados Unidos da América. 
O autor da frase era o sociólogo americano de origem holandesa Ernest van den Haag - conhecido, entre outras coisas, por ser favorável à segregação racial nas escolas devido, cito novamente o pensamento do ilustre autor, “à inferioridade intelectual genética” dos alunos negros. 

Isto de ser intolerante com os intolerantes, curiosamente, é muitas vezes proposto por intolerantes. Não admira. Quando dizemos que é preciso ser intolerante com os intolerantes estamos a revelar intolerância, donde decorre que devemos ser intolerantes connosco.
É um problema difícil, e a líder parlamentar do PS, Alexandra Leitão, deu na semana passada um contributo importante para a sua solução aqui mesmo, no Expresso. 
Foi num texto chamado, precisamente, ‘O paradoxo da tolerância’. Bibliografia: um meme. 

A leitura do texto deixa claro que Alexandra Leitão estudou atentamente uma banda desenhada que circula na internet, e que faz um resumo de uma ideia do filósofo Karl Popper. 
O artigo de Alexandra Leitão termina citando: “Como defendeu Karl Popper na sua obra ‘A Sociedade Aberta e os seus Inimigos’, a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. 
Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.” 

É verdade. 
De facto, a citação encontra-se no livro “A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”. Alexandra Leitão identifica bem a origem da frase, até porque isso também é referido no meme. 
O que o meme não refere é, por exemplo, que a frase figura numa nota de rodapé. 
Nada contra as notas de rodapé nem contra a expressão de ideias importantes em notas de rodapé. Sucede apenas que as notas de rodapé têm letras mais miudinhas, e talvez isso provoque algum cansaço no leitor. Pode ser que isso explique a razão pela qual o meme também não refere que a frase que se segue àquela que Alexandra Leitão cita é esta: “Com esta formulação não pretendo, por exemplo, dizer que devemos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes.” 

Reparem que não é uma ideia que surge num capítulo diferente daquele em que está a frase colhida por Alexandra Leitão, nem noutro ponto da vasta obra de Karl Popper. É mesmo a frase seguinte. 
Ou seja, Alexandra Leitão foi muito pedagógica
Mostrou às crianças e jovens que não se deve tentar estudar obras complexas através da leitura da sua versão em banda desenhada.

Que queria, então, dizer Karl Popper? Proponho que continuemos a ler o texto, lamentando embora que ele, na versão original, não seja acompanhado de bonecos. Diz assim: “Contanto que possamos contrariar [os discursos intolerantes] com argumentos racionais e mantê-los sob o escrutínio da opinião pública, a sua supressão seria extremamente insensata.” 

É possível que a expressão “extremamente insensata” seja demasiado grande, ou demasiado aborrecida, para caber num quadradinho, e fosse perturbar a admirável brevidade do meme. 
Mas é pena, porque assim estamos perante o fenómeno estranho e, creio, inédito de haver uma coisa a circular na internet que apresenta a realidade de forma imprecisa e meio distorcida. Espero que seja uma vez sem exemplo.

Mas afinal, em que ocasião defende Popper a intolerância com os intolerantes?
Continuemos: “No entanto, devemos reclamar o direito a suprimi-lo [o discurso intolerante], se necessário através da força; pois pode facilmente acontecer que eles [os intolerantes] não estejam preparados para nos enfrentar ao nível do debate racional, mas comecem a renunciar ao próprio debate; podem proibir os seus seguidores de ouvir argumentação racional, por ser esta enganadora, e ensiná-los a responder a argumentos com a força de punhos ou de pistolas.” 

É quando isso acontece, isto é, quando os intolerantes recorrem à violência, que, diz Popper, “devemos reclamar o direito a, em nome da tolerância, não tolerar os intolerantes”. E conclui dizendo: “Devemos proclamar que qualquer movimento que pregue a intolerância”, ou seja, que defenda a substituição do debate pelas armas, “está fora da lei, e considerar criminoso o incitamento à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que consideramos criminoso o incitamento ao homicídio, ao sequestro ou à reinstauração da escravatura”. 
É uma ideia bastante simples e sensata. 
Mas Alexandra Leitão não parece percebê-la - nem que lhe façam um desenho

Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia

AC

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