segunda-feira, 20 de junho de 2022

PORTUGAL,  NACIONALIDADE
Nesta manhã de Domingo, aqui em casa, depois de a ter ido buscar ao lar para passar o dia connosco, a minha muito idosa mãe (97 em 8 Julho próximo, muito lúcida, boa memória, mobilidade a fraquejar, limitações de visão) questionou-me sobre as origens de Portugal. 
Um dos pontos da conversa, assentava no facto de que se recordava que em 1940 celebraram 800 anos de nacionalidade tinha ela quase 15 anos. 

"Ora, oh filho, eu sempre aprendi e já li sobre isso, que a fundação da nacionalidade é desde 1143, como é que 800 anos foi a contar de  1140? Afinal qual é a data certa?" 
Conversámos sobre o assunto e prometi-lhe que ia indagar o assunto com um dos portugueses que sabe destas coisas.

E assim fiz.
O português a que me refiro é meu amigo, doutorado em história, com excelentes credenciais na academia, e que me deu os seus pontos de vista sobre o complexo assunto.
Tenho o maior gosto em partilhar o essencial que o meu amigo me transmitiu. Aqui fica.

As referências a acontecimentos que são muitas vezes apresentados como "actos fundadores da Nacionalidade" (Batalha de São Mamede em 1128, Batalha de Ourique em 1139 , Conferência de Zamora (*) em 1143, bula papal Manifestis Probatum em 1179..) são sem dúvida relevantes. 
Já houve até quem chamasse a 24 de Junho de 1128 "A Primeira Tarde Portuguesa", referindo-se à vitória de Afonso Henriques sobre a mãe e o "partido" galego dos Trava, na batalha de São Mamede. 
Mas a questão é, quanto a mim, mais complexa. 

De facto, não há um dia da "inauguração de Portugal". 
Há um processo longo que passa por vários factos e por várias datas. Se o "corte" político com a Galiza foi em 1128 e Afonso Henriques passou a governar o Condado Portucalense, só em 1139-1140 começou a intitular-se rei, no seguimento da vitória em Ourique. 
A partir desta data temos, portanto, um auto-intitulado rei de Portugal, mas que só seria reconhecido como tal em 1143 pelo rei de Leão Afonso VII (o Condado era parte do reino leonês), e o Papa, autoridade religiosa, espiritual e diplomática suprema da cristandade ocidental, só reconheceria o título de rei a Afonso Henriques em 1179.

Mas, mesmo assim, o território português ainda não estava definido, pois a Reconquista portuguesa só terminaria em 1249, com a conquista das últimas praças Algarvias, no reinado de Afonso III. Além de que a fixação da fronteira com Castela apenas seria estabelecida em 1297, no tratado de Alcanizes, sendo rei D. Dinis. 
Foi também com este monarca que o Português substituiu o Latim como língua "oficial" da Chancelaria régia, por volta de 1295-96.

Enfim, podemos considerar que a partir de 1139-1140 há um reino de Portugal como entidade política independente, mas que está e estará ainda muito tempo em construção. 
A questão da nacionalidade é ainda mais complexa, pois enquanto sentimento relativamente generalizado de pertença a uma comunidade própria, distinta de todas as outras, a sua estabilização será ainda mais prolongada no tempo. 
Terá, no final da Idade Média, um ponto alto com a chamada crise ou revolução de 1383-1385, quando se recusa a integração em Castela e se "refunda" o reino com a nova dinastia de Avis.

A tua Mãe tem toda a razão, pois 1940 foi oficialmente considerado "Ano dos Centenários". 
A Grande Exposição do Mundo Português pretendia celebrar 800 anos de "fundação da nacionalidade" e 300 anos de Restauração da Independência. 
Num mundo em plena II Guerra Mundial, a exposição organizada pelo governo celebrava um "Mundo Português" antigo de oito séculos, em paz, e capaz de grandes realizações. 
A História foi mobilizada para essa operação de que os contemporâneos ainda hoje têm memória. 

(*) Não há nenhum tratado de Zamora. 
Houve uma conferência de Zamora. 
É a partir desse encontro, em que também esteve presente um legado do Papa, o cardeal Guido de Vico, que o rei de Leão e Castela, Afonso VII, passa a reconhecer Afonso Henriques como rei de Portugal. 
Nota, no entanto, que não existe nenhum "Tratado de Zamora" em que tal título seja atribuído ao rei português; o que há é dois ou três documentos da chancelaria régia Leonesa dessa altura que passam a designar o português como rei de Portugal. 
Como Afonso VII se intitulava Imperador, era, para ele, um factor de prestígio ter um rei como seu vassalo.
Ao mesmo tempo, Afonso Henriques negociou com o representante da Santa Sé (e sem Afonso VII saber...) que só reconhecia vassalidade ao Papa. 
Portanto, de Zamora, saíram todos contentes: Afonso Henriques porque era reconhecido como rei pelo primo Afonso VII e, em simultâneo, afirmava-se unicamente vassalo do Papa; Afonso VII também saía feliz porque ele, imperador, reconhecia um rei (seu inferior) que, como vassalo, era seu "subordinado".
Ou de como a diplomacia "resolve" tudo a contento da respectiva parte
António Cabral (
AC)

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