sexta-feira, 9 de setembro de 2022

A propósito de MARINHA 
1. Aqui, mais uma vez no sossego da aldeia, além de ler, caminhar, fruir da companhia dos netos, fotografar, cozinhar, é uma das alturas em que percorro mais demoradamente os arquivos e livros arrumados na prateleira. Olhei agora com atenção para um texto recente.

2. O texto/ artigo é o que não há muito tempo o jornal Expresso (tido (??) por - a referência) deu a conhecer aos portugueses. Falo de um longo artigo escrito aparentemente por um dos jornalistas tido (presumo eu) como perito em assuntos militares, geopolítica, assuntos do mar, e sobre uma ideia atribuída ao actual chefe da Marinha nacional. 

3. Digo aparentemente e, sublinho, sem qualquer intuito ofensivo pois, como alguns saberão, os artigos que lemos nos OCS são escritos, na maioria das vezes, integralmente pelos jornalistas mas, outras vezes, muito provavelmente, dão o nome a textos que recebem, ou apresentam coisas previamente combinadas. Na gíria popular, encomendas, favores, fretes. 
É a noção que tenho de há muito mas admito, como sempre, poder estar enganado. É a noção que tenho dado o histórico no país.

4. Um artigo curioso, para dizer o mínimo, sobre um DESIGNADO novo navio da Marinha. Não existe nada, NADA, mas escreveu-se o "novo navio".
Do que li, vi uma caricatura, vislumbrei um desejo.  
Como classificar o artigo? (entrevista?)

5. Antes de prosseguir: não sou, jornalista, arquitecto naval, "spin  doctor", político, membro de "discretas", engenheiro, CEO de estaleiro naval, essa coisa que designam de "influencer", lobista. 
Além disso, a forma, o que ficou pendurado, legitimam as minhas muitas dúvidas e por isso o que escrevo a seguir.

6. Tenho uma ligeira noção sobre como nasce um navio de guerra.
Noção baseada não só mas designadamente na experiência internacional do meu melhor amigo militar, um almirante reformado que, entre outras coisas e andanças por esse mundo, conheceu em detalhe a fase inicial de desenho de um navio de guerra estrangeiro. 
Fase que decorreu durante basicamente 2 anos e, antes dessa fase, tinham já sido definidos os chamados requisitos operacionais. 

7. O que está no parágrafo anterior traduz-se em linguagem simples. Tudo começou com a avaliação da ameaça então conhecida e que se desejava enfrentar com um novo navio de guerra. Tudo começou com uma definição do que se pretendia que esse novo navio pudesse realizar.
E também nessa fase inicial e portanto antes da fase de desenho do desejado navio, foi ponderado com que estaleiro naval o grupo de trabalho receberia o apoio técnico indispensável de modo a chegar-se a um projecto exequível de ser construído. Nesses quase dois anos, houve reuniões mensais no estaleiro naval, concretamente em Antuérpia, para se ir afinando o desenho e características do navio.

8. Não é possível fazer o desenho de um navio de guerra, imaginá-lo, sem que desde o início do processo haja o concurso de um estaleiro naval habituado e habilitado a construir navios de guerra. 

9. Naturalmente que em qualquer sociedade é fundamental avançar, fazer avançar as instituições, o país. É de aplaudir o sangue novo, novas ideias, e decisões, mas decisões fundamentadas.

10. Em Portugal arrastam-se os estudos e os grupos de trabalho. 
Lembro o caso do aeroporto ou da substituição da espingarda G3 que equipa as Forças Armadas desde alturas da guerra colonial.
Mas quanto a decisões convém, como dizia outro dia uma jornalista a propósito de um tal Sérgio, que "não nos tomem a todos por tolinhos". Isto é muito importante.

11. Da leitura do tal artigo do Expresso, do tal navio de guerra revolucionário, chamado novo, reproduzo 14 frases que mais me chamaram à atenção, sublinhando a cor algumas partes:
- conceito criado por Gouveia e Melo; *
- o governo está convencido; para tal, terá dotado 130 milhões €;
- Portugal está a preparar a construção de um navio pioneiro com este conceito;
- Gouveia e Melo teve de convencer muita gente, do topo do poder político a empresas e universidades, para o Governo aceitar inscrever verba avultada no Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) para um tipo de navio que não existe; 
- nenhuma Marinha de Guerra tem um navio multifunções com o conceito que Gouveia e Melo inventou e deu a conhecer num ensaio em 2019, nos “Cadernos Navais”;
- o objetivo é Portugal ter este navio modelar equipado com drones aéreos, de superfície e subaquáticos; 
- somos os primeiros a conceber um navio destes diz o almirante;
- temos uma Marinha pequena e um espaço marítimo do tamanho da Europa: se não for através da tecnologia, não conseguimos chegar lá, diz o almirante; 
- que tem aparecido em sondagens como o preferido dos portugueses para as próximas presidenciais. O almirante não comenta;
- estamos a congregar a indústria nacional e a academia para desenvolver partes do projeto e termos maior propriedade da tecnologia, diz o CEMA;
- nem só de guerra se fará o navio “multifunções”. “Tem a capacidade de vigiar grandes zonas, para fiscalizar as pescas, a poluição, e todo o tipo de atividades ilícitas; e haverá uma componente científica
- pode funcionar como navio polivalente logístico e navio hospital e de transporte, em caso de emergência.
- concurso internacional público foi lançado em Junho, com financiamento de €94 milhões no PRR para a construção e €30 milhões adicionais para desenvolver os primeiros robôs. “Custa um quarto de uma fragata, diz Gouveia e Melo, que prevê um prazo de três anos para o navio estar pronto;
- a Marinha está a fazer roadshows para congregar a indústria nacional e o tecido académico para desenvolver partes do projeto, para termos maior propriedade da tecnologia.

* (o tal crismado de herói das vacinas, potencial candidato a Belém)

12. Como interessado cidadão e curioso destas coisas, o artigo e em particular as 14 frases que destaco, colocam-me interrogações diversas.
Em primeiro lugar e depois de o ter lido recordei as palavras, coragem, frontalidade, inovação, entusiasmo, liderança, sangue novo, modernização, ideias novas.
Mas numa segunda leitura ocorreram-me as palavras, sustentabilidade, noção das responsabilidades, noção das realidades, competências, demagogia, auto-promoção, arrogância, escrutínio, leviandade, propaganda.

13. Este artigo suscita muitas interrogações. 
Legitimamente me faz desconfiar, suscita interrogações sobre se o "brinquedo" se enquadra em assuntos sérios do Estado. 
E, antes de continuar, quero sublinhar que me pronuncio sobre o que li. Se o que li não corresponde ao que anda a ser feito não tenho culpa. Cinjo-me aos factos apresentados. Não estou no campo dos maus juízos porque sim.
O que foi apresentado e como foi apresentado, respeitosa e sinceramente não me cheira a sério. Ainda por cima quando se sucedem outros artigos no mesmo sentido, laudatórios, superficiais, para encher chouriços.

14. O ARTIGO
Respeitando quer o jornalista quer o "alvo", uma leitura atenta do artigo deixa campo a que, legitimamente, se conclua poder estar-se perante um frete. 
Ficam muitas perguntas no ar. 
Além disso, o que escrevi em 6, 7, e 8 baseiam-se num caso concreto, real, e desde o início dos trabalhos para definir os requisitos operacionais até ao fim da fase de desenho do navio decorreram mais ou menos 3 anos. Navio no papel e computador! APENAS!
Agora, com a maior naturalidade, diz-se aos portugueses que uma nova maravilha dos mares estará pronto para navegar em 3 anos. 
3 anos? Típico do estado em que estamos. 
É ler bem as frases que destaco em 11.

15. ESTRATÉGIA NACIONAL
Já por mais de uma vez referi a questão e insurjo-me há anos contra a história do existente "Conceito estratégico de defesa nacional" (CEDN) relativamente ao qual a senhora formalmente titular da pasta da defesa já nomeou uns "sábios" (OCS dixit) para o rever e actualizar.
E insurjo-me porque de há muito advogo um conceito estratégico nacional (CEN). 
Mas não, continuamos com fantochadas (opinião pessoal, naturalmente): agora é que vai ser, a defesa; agora é que vai ser, o mar; agora é que vai ser, a floresta, etc. 
Num país organizado e estruturado, num país com CEN, não haveria lugar a brincadeiras, fosse em que sector fosse do todo nacional. 
No CEN (nada prolixo como o CEDN que temos) haveria uma definição global de rumo para o país, e a definição de prioridades, atentos os recursos, limitações, desafios, riscos, ameaças. 
Continuamos a brincar e a inchar os peitos a uns ditos sábios alguns dos quais com estágios pagos lá fora sabe-se lá com que proveito nacional.

16. DEFESA NACIONAL (DN)
A DN como as pessoas intelectualmente honestas e letradas sabem, têm diversas componentes sendo a componente militar uma delas. 
A componente militar é materializada pelas Forças Armadas (FA). Estamos a caminho dos 50 anos passados sobre o 25 de Abril de 1974, e continua o desgraçado e maltratado país sem ter uma definição concreta e rigorosa sobre se deve ou não ter FA e, tendo-as, que FA. 
O execrável Putin agrediu a Ucrânia e logo saltitaram Marcelo e Costa, e Carreiras, e sábios diversos - agora é que vai ser quanto a guerra, defesa e FA
Sorrateiramente, apareceram depois uns discursos frouxos a colocar algum travão nas primeiras proclamações. Dizem que Putin se preocupou com os arrufos nacionais dessa altura. Mas já sossegou!

Estamos num país com três Zonas Económicas Exclusivas enormes e com a possibilidade de um dia poder ver positivamente sancionada pela ONU a extensão da plataforma Continental. 
MAR, e MAR, e MAR, que uns cromos quererão talvez patrulhar com barquitos pindéricos quase oferecidos exactamente para nos ludibriar.

17. FORÇAS ARMADAS
A chamada crise nas FA arrasta-se pelo menos desde 1991. Arrasta-se penosamente, e particularmente desde 1995 com o premeditado gradual estrangulamento financeiro.
Face ao aduzido até aqui é assim surpreendente o que se noticia sobre um tal de "navio novo" repleto de "drones" de todos os tamanhos e feitios. Miraculosamente a ser parido pelo PRR. 
Já não é surpresa nenhuma que o senhor jornalista nada se questione sobre realidades concretas do mundo da construção naval, o que legitima a teoria do frete cumulativo com propaganda e promoção pessoais.

18. POLÍTICA NACIONAL
A política nacional e particularmente com o actual inquilino de S.Bento e formalmente chefe do governo mostra que hoje diz-se e promete-se uma qualquer coisa, mas sabe-se que amanhã pode vir-se a assobiar para o ar. 
O PRR não fugirá a esta regra Costiana! 
Quando falo em política quero referir-me em concreto à política de defesa que não própria e exclusivamente quando à sua vertente militar. 
Que política de DN consistente para o país definiram Guterres/ Vitorino, Barroso/ Portas, Sócrates/ Santos Silva, Costa/Cravinho?
Temos sobretudo Marcelo a palrar.

19. PROJECTOS PESSOAIS
Faz parte da natureza humana certas pessoas por vezes inebriarem-se.
Iludirem-se. 
Estou a lembrar-me de um certo e relativamente recente candidato presidencial que só tarde se terá apercebido de que o suposto e forte apoio de um grande partido afinal não era bem "favas contadas". 
E tantos outros exemplos. 
A esmagadora maioria dos que se entusiasmam excessivamente, dos que se iludem, nunca percebem que a maioria dos cargos para onde os remetem são exactamente definidos para que não incomodem mais politicamente, para que fiquem controlados.

20. NAVIOS de GUERRA e correlacionados
a. No agudizar da latente crise China - Taiwan noticiou-se a existência à volta da ilha de um moderno e recente navio de guerra Chinês cheio de "drones". Quase apetece perguntar, o adido de defesa Chinês acreditado na embaixada da China em Lisboa, conheceu anos atrás a ideia do almirante Gouveia e Melo e levou-a para Pequim?

b. Deixando a brincadeira de lado, o assunto é demasiado sério para ser tratado com a ligeireza e superficialidade que legitimamente se retira do artigo do Expresso. 
E volto a repetir, pronuncio-me com base no que foi apresentado.

c. Presente o que escrevi acima (6º, 7º, 8º parágrafos) o brinquedo como lhe chamei foi apresentado no Expresso parecendo-me que sem a necessária adequação ao que tem de ser considerado num processo de construção /aquisição de um navio de guerra e, particularmente, um protótipo peculiar que, as marinhas NATO creio nada têm de equivalente. 
É num "road show" que se define o contrato com um estaleiro?
O concurso internacional anunciado é para a construção? 
Já, assim de repente, para tal bastando pouco mais que um escrito de 2019?
Lá fora levam pelo menos 3 anos para definir requisitos operacionais e depois concluir a fase de desenho de um navio de guerra ou seja, ter em papel e computador os desenhos que habilitem um estaleiro naval a construi-lo.
Ora cá em Portugal, pelos vistos, uma "luminária" convence o governo (será mesmo assim?) que em três anos terá um navio de guerra inovador que ninguém no mundo tem, e pronto a navegar imediatamente. Importa-se de repetir?

d. Será que explicaram tudo à Sra Carreiras que esta pretendida inovação não tem igual no mundo e que mesmo assim é num instante que se constrói, além de lhe assegurarem que não existem riscos de espécie nenhuma neste pretendido projecto?

e. Será que explicaram tudo á Sra Carreiras sobre, manutenção de navios, logística, formação no estrangeiro, necessidade de preparar a construção de pelo mais mais dois navios do mesmo tipo deste super protótipo? Ou que os "drones" vão todos ser construídos em Tróia?

f. Investir na Marinha nomeadamente baseado no que em parte acima referi, é uma evidência para qualquer ser intelectualmente honesto e que repare na circunstância geográfica de Portugal. Seja isto inconveniente a quem for.
Talvez fosse mais que tempo dos senhores jornalistas serem mais  rigorosos, deixarem-se de loas a certas criaturas, e não tomarem todos os portugueses por tolinhos! e fazerem perguntas concretas (*)

g. Sim, nas nossas ZEE temos problemas diversos a encarar tal como actividades a realizar e assim, podemos lembrar as drogas, trasfegas ilegais de petróleo, pesca ilegal, rotas de imigração ilegal, a necessidade de vigilância das nossas águas, evitar explorações de fundo não autorizadas, investigação científica não autorizada e ainda   as responsabilidades nacionais a cargo da Marinha e Força Aérea no que concerne à segurança e salvamento no mar. 

h. Não creio que tudo isto como descrito pelo Expresso e outros se coadune com projectos pessoais. Sejamos sérios.
Conheço bem "Os Lusíadas". 
 
Sei bem que a opinião sobre cada um a outrem pertence. 
Ainda assim, não me tomem por tolinho, e não sou velho do Restelo exactamente porque nunca me conformei nem o meu melhor amigo militar com os CEDN e a doutrinação de anos e anos de generais e doutores. 
Nem me conformo com a persistência dos avençados que periodicamente gargarejam loas a certas criaturas.
Não tenho a menor dúvida sobre o que devia existir nas FA e nomeadamente na Marinha e na Força Aérea tendo nomeadamente em conta o nosso MAR. 
E não tenho dúvida alguma de que há muito devíamos estar a fazer diferente.
Mas, repito, não me tomem por tolinho.
António Cabral

(*) - perguntarem por exemplo por há apenas este ou aquele meio quer da Marinha quer da Força Aérea para as ilhas e gigantesca ZEE dos Açores.
Perguntarem por exemplo porque não se discute publicamente na Assembleia da República (AR) a distribuição de meios militares pelo país e se trata das coisas meio às escondidas entre a comissão parlamentar de defesa, o conselho superior de defesa nacional e o comandantezinho das forças armadas.
Tentarem perceber porque não se discute publicamente em plenário na AR quer as questões orçamentais, quer as questões de meios, ou porque ano após ano a Lei de Programação Militar é mordida com cativações e etc.
Tentarem, perceber o que é rotação de meios. Etc.

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