Fui ao FUNERAL porque ERA AMIGO DELE
(Coronel Matos Gomes, Expresso 19 Fevereiro 2021)
Salvo melhor opinião, uma frase de combatente digno e que, tanto quanto sei, o foi sempre pelas boas leis da guerra. Uma frase que espelha dignidade, não traição a amigos, independentemente de um juízo diferente, justo e frontal no que toca à guerra em África, guerra que muitos enfrentaram (eu também fui um deles). Muito se tem escrito e ouvido acerca do passamento deste português, Marcelino da Mata, nascido na Guiné, deste homem complexo como todos nós, deste militar discutível como todos os militares e particularmente todos os que foram combatentes reais e não de ar condicionado. Por ser sempre prudente observar alguma distância em relação à história e a certos acontecimentos, aguardei uns dias para ponderar sobre o assunto que tem feito correr muita tinta, sobre um homem que nunca pessoalmente conheci, sobre quem ouvi imensas histórias, e a propósito dele muitas histórias ouvi também acerca de quem algumas vezes o comandou no mato levando apenas uma americana calibre 45, tal como sobre certos outros mandantes de então. Histórias, a maioria das quais certamente correspondentes a realidades, incluindo a coisas que muitos de nós, provavelmente, não faríamos, porque não estávamos lá e, quase certamente, por falta de condições físicas psíquicas anímicas e intelectuais para as cometer.
Duas notas antes de prosseguir:
1ª - respeito as opiniões de outrem, sempre, mas já estou cansado dos Fernandos Rosas e de muitos outros MRPP's incluindo os que se entretêm com sinecuras e vacinas, as Anas Sá Lopes, os Manuéis Loffs, os Rui Tavares, os João Miguel Tavares, os André Venturas, os Ascensos Simões, as Catarinas, as Isabéis, e tantos outros das mesmas cores. Como cansado estou dos vergonhosos passos para limpar os passados de protagonistas e mandantes das violentas FP25 de Abril, relativamente ás quais alguns sem vergonha nenhuma na cara só lhes falta dizer que essas gentes e um dos seus inspiradores foram o êxtase da democracia, e que nunca mataram ninguém, e nem por tal são responsáveis. Como cansado estou dos que fingem, não ter havido MDLP, nem PREC, nem rajadas de metralhadora contra portões só porque sim. Como cansado estou de alguns daqueles que combateram em África, bem próximos de altas figuras do regime de então, e que no PREC se comportaram como uns alienados absolutos. Como cansado estou do endeusamento daqueles que enriqueceram brutalmente apenas com o normal vencimento do Estado/ da política. CANSADO!
2ª - Como outros, como um bom amigo, combati na Guiné, 29OUT1971-28JUL1973, a bordo de um navio da então designada Marinha de Guerra, onde fui o oficial imediato (equivalente a 2º comandante), e quando digo combati é literal. Por exemplo, o navio foi atacado e teve estragos vários, pelas 2340 horas, numa noite de luar fantástico, no rio Cacheu, no já muito distante dia 19 de Maio de 1973, quando navegávamos em ocultação total de luzes e em postos de combate a bordadas, como habitualmente. Eu (por centímetros) e outros, podíamos ter morrido. Não calhou, morreu um comando africano dos muitos que nessa altura transportávamos, depois da operação que eles tinham levado a efeito dias antes sob comando de uma muito conhecida figura. Houve vários feridos.
Refiro isto para dizer que fui combatente, mas também para dizer que, correndo sempre reais e sérios riscos de vida quando navegando nos estreitos rios, ainda assim esse combate durante 21 meses da comissão de serviço na Guiné foi diferente do combate da tropa especial dos três ramos das Forças Armadas (FA) (fuzileiros, comandos, pára-quedistas) que iam a sítios terríveis, que combateram em circunstâncias muito difíceis, e em que muitos morreram, outros ficaram feridos, outros estropiados para o resto das suas vidas. Um combate com sérios e constantes riscos de vida, sim, mas diferente do daquela tropa de quadrícula do Exército, estacionada em determinadas zonas e quartéis disseminados pela Guiné, muitas vezes lá enfiados meses e meses borrados de medo, sob bombardeamentos de canhão sem recuo do PAIGC, umas vezes periódicos, outras quase diárias sobretudo no ano de 1973. Um combate diferente do dos pilotos da Força Aérea que foram derrubados e alguns morreram, ou dos que após Março 1973 foram obrigados a voar o mais alto possível sem algumas vezes conseguir distinguir bem os alvos.
Voltando a Marcelino da Mata, e como bem recorda quem em África combateu em mais de uma comissão de serviço e é intelectualmente honesto, provavelmente mais de metade dos portugueses que combateram em África era de origem Africana, e Marcelino da Mata como outros em Angola e Moçambique, levou a cabo durante anos uma guerra irregular, muitas vezes quase certamente à margem das leis da guerra, mas que os comandos dessa altura mandavam fazer porque disso precisavam, isso queriam, e de tudo sabiam. E a maioria calou, embora alguns tenham agora rebates de consciência para ficarem de bem junto dos polícias das mentes e do politicamente correcto, e junto dos imbecis que já tiveram a felicidade de não irem à estúpida guerra mas se atrevem a tecer apreciações com os parâmetros de hoje, a preto e branco.
Percebo e comungo da opinião de que Marcelino da Mata nunca foi um herói, pois não tinha um ideal. O que ouvi na Guiné bate certo com o que no presente alguns afirmam sobre Marcelino da Mata, os que são intelectualmente honestos. Que era um militar duro e sereno, porventura violento, acredito mesmo que muito violento no mato, que se preparava muito bem antes de partir com o seu pequeno grupo para as operações que lhe determinavam os comandos brancos na Guiné, a cadeia hierárquica a começar em Spínola, que de tudo se inteirava. Discutir a guerra com seriedade, são poucos os que o fazem, porque a esmagadora maioria "activa sempre o modo" da desonestidade intelectual, e pretendem sempre reescrever a história. Discutir a guerra colonial com seriedade são poucos os que o fazem.
Marcelino da Mata, foi o mais condecorado dos militares portugueses, mas muitos outros militares, da Marinha de Guerra, do Exército, e da Força Aérea, foram condecorados durante os anos da guerra em África. E houve condecorações de militares pelos seus feitos na guerra, nos matos, e por combate em unidades navais, e por combate com meios aéreos. E, como sempre, houve também condecorações atribuídas a militares pelos bons serviços prestados mas que nunca foram ao mato combater. Mas isso é compreensível, pois havia que suprir com meios humanos os comandos, os estados-maiores, alguém tinha que o fazer, e aí cumprir. E cumpriram.
Quanto à Guiné estou a lembrar-me de alguns que estavam perto de Spínola, em certas e especiais repartições/ departamentos, um dos quais, por exemplo, embarcou no meu navio acompanhando jornalistas franceses (Paris Match) que tinham ido observar a excelência da guerra promovida pelo general, a excelência da gestão administrativa de Spínola, sempre no âmbito da sua campanha no país e no exterior. É compreensível e tem de se respeitar, mas há condecorações e condecorações. Como se passa hoje em democracia, pois basta ser ajudante de um general ou almirante chefe de estado - maior ou ser ajudante do PR por exemplo, para ao fim de um ano e pouco de serviço ser logo agredido com uma medalha. Ou, ao terminar o cargo de chefe militar, automaticamente ser condecorado pelo PR. Ou, depois de ser PM, ser automaticamente condecorado pelo PR, excepto, e bem na minha opinião, o farsante Sócrates.
Marcelino da Mata (MM) praticou crimes de guerra à luz das leis da guerra? Não sei, mas é bem provável. Alguns dizem que é certo, mas bem podiam ter feito essas denúncias logo pelo menos a seguir ao 25 de Novembro de 1975. Quem de certeza não os praticou foram todos aqueles que estavam no ar condicionado em Luanda, em Lourenço Marques, em Bissau. Não os praticou quem esteve meses encurralado em Guidaje, Bigene, Quilege, Farim, etc., esses que se alguma menor pressão por parte do PAIGC tiveram em certos períodos foi por acção, da aviação da FAP, dos comandos, dos pára-quedistas, dos fuzileiros, e de grupos como o de Marcelino da Mata.
Desculpável, essa parece que certa, prática de crimes de guerra? NÃO. Repito, NÃO. Mas presumo que durante a democracia Marcelino da Mata não cometeu qualquer crime de sangue. Creio que ele o podia afirmar. Assim todos o pudessem dizer.
Alguns avançam que MM nunca foi acusado da prática de crimes de guerra, nem julgado. Nem lhe retiraram as condecorações. Obviamente, pois ele obedeceu a ordens, e as hierarquias, muitas das quais atingiram os postos máximos no Exército já em democracia, presumo que sabiam de tudo. E não esquecer Spínola, que de tudo se inteirava ao detalhe. Não quer dizer que aprovassem atrocidades, a esmagadora maioria não aprovava, óbvia e certamente. Mas, sem desculpar nada do que de horrível se terá passado por lá, na Guiné, quem me diz a mim que em Angola em São Tomé e Principe e Moçambique, não aconteceram coisas idênticas e/ ou piores? Horrores, de ambos os lados da barricada? E que no início das hostilidades, por exemplo sei lá, em Angola, não possa ter havido quem se divertisse "tirando" fotografias a grupos de pessoas com recurso a bazuca? Naturalmente que isto não passa de pura invenção. Como invenção, certamente, a chacina de crocodilos nos rios, a pesca com granadas, etc.
Para tentar terminar este arrazoado, que mexe um pouco comigo pois andei por lá, sempre na vida houve e haverá, condecorados que o não deviam ser, atribuições imerecidas de comendas, nomeações para bons cargos por nepotismo, mandantes que sem vergonha na cara se desculpam por mortes perpetradas pelos seus executivos, quem consegue ser indultado e amnistiado por inconfessáveis razões, quem analise e argumente com honestidade intelectual, quem ofenda quem pensa diferente ainda que civilizadamente, quem fale do que não sabe, quem considere ainda nos dias de hoje que o passado e o presente foram e são coisas a preto e branco. É importante respeitar as opiniões divergentes, e civilizadamente ponderar as questões.
Massacres? Crimes de guerra? Violações de mulheres e crianças? Aldeias arrasadas? Bombardeamentos aéreos sobre alvos que não se sabia bem se seria ali? SIM, houve certamente de tudo. Eu combati na Guiné, como outros, não propriamente porque fossemos fascistas, ou porque não tivéssemos alternativa. Por exemplo, o meu melhor amigo militar, que é de Marinha, podia ter ido para Luanda e não aceitou que a família disso tratasse, e era tão fácil, dadas as circunstancias da vida. Foi para a Guiné.
A guerra não justifica tudo, nem horrores nem outras coisas, como aconteceu com alguns que foram para o ar condicionado de Luanda ou Lourenço Marques, quando parece que lhes calhava ir para o Leste de Angola ou Guiné, pelo que em consequência outros foram para onde não deveriam ter ido.
A terminar, confesso que tentei perceber e, talvez por deficiência minha, ainda não consegui encontrar explicação para o que se passou com o falecimento deste português e combatente. Porque esteve no funeral de Marcelino da Mata o PR, mais chefias militares, etc.? Porque houve na AR uma certa homenagem a este destemido militar português ? Porque surgiu tudo isto, e quem o promoveu?
Uma coisa é para mim certa, e não é de agora que assim penso. A guerra não é aceitável. Os portugueses de África e os do Continente e Ilhas, os africanos e os europeus, foram todos vítimas dum conflito e de um regime que nunca quis resolver as questões por negociação diplomática/ política, como fizeram outros países. A realidade é dura. Houve massacres executados por brancos, por negros e por mestiços, uns contra os outros. A guerra deixa marcas. Em mim, felizmente, muito poucas deixou. Muitos milhares de portugueses não podem dizer o mesmo. Muitos milhares de famílias não podem dizer o mesmo, pois perderam os seus familiares. Infelizmente.
Por todos eles, milhares ainda vivos, militares e milicianos, a todos é devido respeito. É devido respeito pelos que morreram, pelos feridos e estropiados, pelos que combateram no mato, pelos que combateram nos estados-maiores, pelos que combateram no ar, pelos que combateram nos rios, pelas famílias sofridas e pelas famílias destruídas. RESPEITO, é devido.
Falar disto, seja a propósito de um antigo combatente ou não, sem honestidade intelectual e distanciamento, é uma grande falta de respeito por nós todos, nós que lá estivemos, nós que conseguimos regressar, e por nós os que por lá morreram. Dos que por lá morreram, o Estado português materializado designadamente pelos sucessivos PR, governos, e AR, por lá os continua a deixar estar. Muitos restos mortais de portugueses falecidos em combate foram já resgatados e regressados ao Continente, mas muitos outros por lá continuam. E este presidente da República, e este governo, e esta AR e estes deputados, e este ministro da defesa nacional, passam o tempo com discursos e tiradas patéticos, anúncios de reformas tolas, sugestões para noites em quartéis, idiotices sucessivas. Uma total falta de RESPEITO.
António Cabral (AC)